Prisioneiros do Passado - Último Episódio

     

Episódio 03 - Último

Escrita por: Ted Moreira

Com 03 Episódios.


Continuação imediata do capítulo anterior.


Um longo período de silêncio no ambiente. Daniel continua bastante chocado, enquanto Valentina permanece com sua expressão de desespero. Seu olhar agora é totalmente cheio de receios, cheio de dor e angústia. Daniel encara Valentina de forma bastante misteriosa e seus olhos enchem de lágrimas.


VALENTINA — (Chorando) Se você… se você não… não quiser falar nada, eu vou te entender. - A vontade de chorar de Valentina cresce a cada palavra que sai da sua boca. - Mas por favor, deixa eu te explicar tudo. Eu prometo pra você que depois disso eu jamais vou te procurar. Você tem esse direito de não querer mais olhar na minha cara, porque eu imagino o quanto deve estar sendo confuso e difícil pra você ouvir isso. (T) Daniel, olha pra mim, Daniel! Eu vou te explicar tudo. Tudo!


Mais alguns longos segundos de silêncio. Enquanto Daniel permanece em estado de choque total, Valentina segue eufórico de tanto desespero. A mulher respira fundo ao mesmo tempo que deixa várias lágrimas escaparem.


VALENTINA — (Sentida/Desesperada) Eu tinha apenas dezesseis anos quando comecei a namorar com o seu pai. (T) Mário. Mário o nome dele! (T) Tão lindo! Tão doce e cavalheiro comigo! O tempo passou e com dezenove anos eu engravidei do nosso primeiro filho. O Ruan! O seu irmão! - Ela respira fundo. - A gente vivia na pobreza, mas existia amor. Existia mesmo, era nítido! Existia até o primeiro momento em que ele resolveu me trair. Daí em diante você não imagina o tanto que eu sofri, os horrores que eu passei, que eu tive que suportar. O seu pai se tornou um adúltero. Se tornou um bêbado violento! - Agora ela chora sem parar. - Eu não sei o que aconteceu. A culpa não era minha, não era do Ruan. A culpa era dele, totalmente dele! (T) Com vinte e seis anos eu fiquei grávida de você. A essa altura tudo já tinha piorado. Ele me agredia praticamente todos os dias, fazia eu me sentir um lixo. Quando soube que eu estava grávida, passou a me agredir com palavras, me colocando pra baixo, me depreciando como se eu fosse um lixo inútil e nojento.


Daniel, ainda em estado de choque, ouve tudo com atenção. Valentina segue chorando, cheia de angústia e dor no peito por estar tendo que relembrar todo o seu passado.


VALENTINA — (Cont./Chorando) Aí eu tive você. Um bebê lindo, muito lindo! As agressões voltaram e eu decidi que não podia mais viver daquele jeito, não podia deixar meus filhos expostos a um canalha nojento, um bêbado miserável. Eu comecei a tomar algumas atitudes, até que chegou um dia… um fatídico dia que eu resolvi devolver um tapa. Ele me espancou, mas eu gostei de não ter abaixado a cabeça. Eu gostei de ter enfrentado o desgraçado pelos meus filhos e por mim também. E assim eu segui, até não suportar mais. E foi em outra briga que eu… que eu me defendi novamente e cravei quatro facadas no miserável. - Valentina respira fundo novamente e olha no fundo dos olhos de Daniel. - O Ruan presenciou toda essa cena e fugiu com medo, tadinho. Eu não fui atrás, não fiz nada porque eu sabia que seria muito melhor pro meu filho viver longe de mim, longe de uma assassina. Ele tinha uma vida toda pela frente, não merecia passar por tudo isso ao meu lado. Eu fiz isso e não me arrependo. Faria de novo, de novo e de novo. (T) Eu… eu iria te mandar pra adoção, mas eu não tive coragem. Aquele bebê lindo nos meus braços era a única coisa naquele momento que fazia eu me sentir um ser humano com uma vida pela frente e capaz de amar.


Daniel continua observando e ouvindo tudo atentamente, porém visivelmente abalado, com uma expressão cansada.


VALENTINA — Como o Mário era um bêbado, eu inventei pra polícia que tudo aquilo tinha sido um atentado de qualquer cheira cana por aí que tinha rixa com seu pai. E deu certo! (T) Pouco tempo depois eu encontrei uma pessoa que me ajudou muito, que me deu emprego e eu me apaixonei mais uma vez, só que dessa vez seria diferente. Seria diferente por mim e seria diferente por você. Você sabe de quem eu estou falando, do seu padrasto que você tanto amava. Infelizmente ele faleceu, né? Mas hoje eu lembro dele como uma pessoa maravilhosa e é isso que importa. Hoje estamos aqui. Eu tô me abrindo com você, te contando tudo porque finalmente eu arranjei coragem pra deixar de ser aquela covarde que não conseguia encarar as coisas de frente. (T) Eu estou tirando forças de onde não tenho pra te contar isso, porque me dói muito saber que você pode nunca me perdoar. Mas mesmo assim eu vou te pedir: me perdoa! Me perdoa, Daniel!


Mais segundos de silêncio no ambiente. Daniel olha pra sua mãe e, logo em seguida, se levanta do sofá e põe suas mãos em sua cabeça em sinal de confusão.


DANIEL — (Em choque/Chorando) Você… você matou o meu pai!


VALENTINA — (Chorando) Matei! Matei, mas foi por defesa. Eu me defendi daquele animal e não me arrependo. Nunca vou me arrepender!


DANIEL — Por que… por quê você não chamou a polícia? An? Por quê? Seria muito mais fácil do que sujar as mãos de sangue.


VALENTINA — (Chorando) Eu já te falei que eu me defendi. Foi uma coisa do momento, eu estava encurralada, apanhando! Eu tive que fazer porque eu já não aguentava mais. Tava doendo! Cada chute que ele me dava parecia que eu iria morrer. Eu estava colocando sangue pela boca, será que você não entende o meu lado? Foi a única alternativa que encontrei!


DANIEL — (Desacreditado/Chocado) Meu deus! Eu não tô acreditando nisso. Eu não estou conseguindo acreditar em tudo isso. É absurdo, é surreal!


VALENTINA — (Chorando) E depois, Daniel, não era mais fácil chamar a polícia, não. Graças a deus você nunca passou por isso, e eu vou te falar uma coisa: eu rezo todos os dias para que você não tenha que passar. É terrível. É desesperador, é doloroso, angustiante… é horrível. Muito horrível! (T) A minha vida é marcada negativamente até hoje por causa de um verme que resolveu de uma hora pra outra acabar com ela. Você não me entende e talvez nunca me entenda!


Daniel permanece em silêncio, desesperado e chocado, olhando pro nada.


VALENTINA — Eu estou aqui abrindo o meu coração pra você, pra que ao menos o mínimo você tente entender: que tudo o que eu fiz foi pro nosso bem. Foi por amar meus filhos e por estar cansada de tudo aquilo. E ao contrário do que você pensa, sempre pensou e talvez nunca deixe de pensar, eu não sou egoísta.


Valentina respira fundo, fecha seus olhos por alguns segundos e abre-os logo em seguida.


VALENTINA — (Cansada) Tá aí pra você que sempre quis saber. Agora que você sabe, eu espero que faça bom proveito das informações e não termine como eu, angustiada, magoada, ferida, sem nenhuma perspectiva, sem nenhuma vontade de avançar em qualquer coisa que seja. Eu espero do fundo do meu coração que você seja muito feliz com seu namorado. E ao contrário do que você deve pensar também, eu não tenho esses caprichos de mãe preconceituosa e mesquinha que prefere querer satisfazer suas vontades do que ver os filhos felizes. (T) Eu espero que algum dia você possa me perdoar, porque eu sinto muito. Pode apostar como eu sinto!


Valentina começa a caminhar muito devagar na direção de Daniel, que está de costas e com sua mão direita apoiada em sua testa. Ela chega perto do seu filho e começa a estender sua mão esquerda lentamente para tocar o braço esquerdo do rapaz. Ao sentir o toque da sua mãe, o garoto se afasta bruscamente e se encolhe em seu próprio abraço.


DANIEL — (Atônito/Cansado) Não me toca. Sai de perto de mim, eu não quero que você chegue perto de mim. Não agora!


Neste momento, Valentina desaba em seu choro e se coloca de joelhos no chão, desesperada. Ela está em um choro incessante e observa Daniel se afastando cada vez mais na direção da porta, até abri-la e sair sem dizer mais uma única palavra, deixando sua mãe sozinha naquela sala escura e tenebrosa para o momento, onde as únicas iluminações presentes são as de pequenas lâmpadas instaladas nos cantos altos das paredes pintadas em tons escuros. Valentina permanece ajoelhada em seu sofrimento que parece ser eterno.


CENA 02/ RUAS DA CIDADE/ PRAÇA/ NOITE.


Daniel caminha pelas ruas desertas desolado, abalado e aparentemente cansado. Seu choro é também incessante. Ele continua caminhando até chegar em uma praça. O rapaz vai até um dos bancos e se senta, cruzando seus braços ao redor do corpo e se encolhendo para se aquecer por conta do frio intenso.


Alguns grupos de poucas pessoas passam por ali. Alguns jovens bêbados, outros fumando cigarro, outros fumando maconha. Após alguns segundos Daniel se encontra novamente sozinha naquela praça pouco escura, apenas com alguns postes iluminando.


CENA 03/ MANSÃO DOS BROOMER/ INT./ SALA/ NOITE.


Ainda ajoelhada no chão, Valentina olha pro ar, com um olhar cheio de confusões e receios. A mulher continua nessa posição, até que Carla aparece na porta ainda aberta e olha sua amiga com um olhar de pena e empatia. Ela caminha até Valentina e se abaixa em sua frente.


CARLA — (Receosa) Eu tô vendo que o Daniel não entendeu logo de cara, não é?


O silêncio é incômodo e persiste por longos segundos, até que Valentina abaixa sua cabeça aos poucos afim de olhar diretamente nos olhos de Carla.


VALENTINA — (Desolada) Não. Ele não entendeu e pra ser sincera eu acho que ele nunca vai entender.


CARLA — (Triste) Valentina, eu sinto muito. De verdade!


VALENTINA — (Chorando) O meu filho é a coisa mais importante da minha vida, Carla. Eu não sei se vou conseguir viver sabendo que ele me odeia, sabendo que ele me despreza, que não acredita em mim!


CARLA — Olha, você fez a sua parte. Você… você foi honesta, abriu seu coração e infelizmente ele não conseguiu te entender, talvez pelo choque ou por qualquer outra razão! (T) Dá um tempo pra ele, amiga. O Daniel é uma pessoa justa, um dia ele vai te entender!


VALENTINA — E se esse dia nunca chegar? Hein? O quê que eu vou fazer da minha vida? Vou morrer sozinha com esse peso todo nas minhas costas? A mercê de um homem que mesmo morto há muito tempo ainda me assombra todos os dias? Que mesmo depois de quase trinta anos ainda tem interferência na minha vida? Eu não aguento mais!


Carla continua observando Valentina e prestando atenção em todas as suas palavras.


VALENTINA — Sabe, Carla, na primeira vez que o Daniel me perguntou sobre o pai dele, eu juro pra você que pensei em inventar alguma mentira pra deixar ele longe disso de uma vez por todas. Ninguém nunca iria saber de nada, né? Só eu! Mas eu não tive coragem de mentir pro meu filho, então eu resolvi apenas omitir e esperar a coragem chegar pra que eu contasse tudo. A coragem finalmente chegou e com ela vieram todas as consequências de anos escondendo tudo. Se o Daniel resolver me entregar pra polícia, eu vou confessar tudo. Eu mereço pagar pelo que fiz!


CARLA — Não fala isso. Ninguém pode te julgar por ter feito o que fez. Você apenas se defendeu de um nojento que estava te espancando e é isso que vale. Legítima defesa! E depois eu nem sei se você pode ir presa por isso, já se passaram tantos anos, o caso deve ter prescrevido!


VALENTINA — Eu não sei. Eu só sei que eu não aguento mais toda essa situação, todo esse sofrimento. Eu preciso do meu filho, preciso dele aqui comigo!


CARLA — (Empática) Minha amiga!


Neste momento, Carla dá um forte abraço em Valentina, que desaba mais uma vez, desesperada. As duas permanecem abraçadas por longos segundos. Carla parece bastante preocupada.


CENA 04/ RUAS DA CIDADE/ PRAÇA/ NOITE.


Ainda sentado em um dos bancos vazios da praça, Daniel segue bastante quieto e pensativo.


(Pensamento - Daniel) VALENTINA — (Chorando) E depois, Daniel, não era mais fácil chamar a polícia, não. Graças a deus você nunca passou por isso, e eu vou te falar uma coisa: eu rezo todos os dias para que você não tenha que passar. É terrível. É desesperador, é doloroso, angustiante… é horrível. Muito horrível! (T) A minha vida é marcada negativamente até hoje por causa de um verme que resolveu de uma hora pra outra acabar com ela. Você não me entende e talvez nunca me entenda! (Off)


O rapaz sente bastante frio e se encolhe cada vez mais. Ele põe seus braços por dentro de sua blusa na tentativa de se aquecer ainda mais.


Corta Para:


Pouco longe da praça, Mateus observa Daniel. O homem parece preocupado e triste por ver o amado naquela situação. De repente, o celular de Daniel em seu bolso toca e ele enfia sua mão direita no local para pegar o aparelho. Ele segura em sua mão e, logo em seguida, observa que é uma chamada de Valentina. Ele atende e leva até seu ouvido direito.


MATEUS — (Ríspido) O que você quer? (T) Cuidar do Daniel? Claro, eu faço isso sempre, já que a mamãezinha dele não sabe o que é isso. (T) Se você soubesse o que era melhor pro seu filho, teria aberto o jogo sobre tudo para ele há muito tempo. (T) Não seja cínica, dona Valentina! (T) Não, ele ainda não me contou qualquer coisa. Mas não precisa ser um gênio pra imaginar o nível da gravidade de tudo que você escondia e esconde.(T) Pode deixar que eu vou cuidar dele sim, não se preocupe com isso. Tchau!


Ele desliga a chamada e coloca o celular de volta em seu bolso. Mateus continua observando Daniel de longe, até que o rapaz se levanta do banco e começa a caminhar sem rumo. O mais velho o segue discretamente. Ele olha no relógio em seu braço, que marca 23:06 PM.


Corta Para: 


Mateus continua seguindo Daniel. O mais novo entra em algumas ruas desertas e escuras e continua caminhando sem parar, até chegar em um estabelecimento um pouco escondida, com algumas luzes acima da porta indicando o nome do local: The Night Is Ours.


O mais novo entra no local e Mateus continua de longe, agora se escorando em uma parede e ao lado de uma caçamba de lixo para esperá-lo. Ele olha em seu relógio, que agora marca 23:58 PM.


CENA 05/ BOATE THE NIGHT IS OURS/ INT./ BAR/ NOITE.


Daniel caminha por entre um multidão de pessoas dançando até chegar no bar. Ele se senta em uma das cadeiras altas e sofisticadas e passa a observar o local: escuro, com algumas luzes piscando, iluminando o local de forma muito rápida, da mesma forma rápida que volta ficar escuro novamente. Agora as luzes piscando dão lugar à várias luzes de neon, momento em que as pessoas começam a gritar fervorosamente ao mesmo tempo que começa a tocar Wildflower - 5 Seconds Of Summer.


O rapaz continua prestando atenção em tudo ao seu redor em um completo transe, até que de repente o barman chama sua atenção e ele observa o homem de cima a baixo.


BARMAN — (Simpático) E então? O que você vai querer?


DANIEL — (Confuso) Eu… eu quero cinco doses de tequila pura. E se puder trazer mais algumas doses de whisky, eu agradeço!


O rapaz resolve assentir com a cabeça e logo em seguida se vira de costas para pegar o pedido de Daniel. As batidas da música se intensificam cada vez mais e, de repente, um homem (Igor Fernandez) de aparentemente vinte e cinco anos senta em uma cadeira ao lado de Daniel e o olha com desejo. Daniel percebe os olhares do homem e resolve o olhar também, soltando logo em seguida um um sorriso.


O barman entrega o pedido de Daniel e o rapaz, em alguns impulsos, toma metade de toda a bebida e pigarreia algumas vezes por conta da queimação em sua garganta. Após alguns segundos pigarreando, ele toma o restante das bebidas e logo em seguida começa a caminhar na direção da pista de dança, ao mesmo tempo que dá algumas olhadas e solta uns sorrisos para o rapaz ainda sentado na cadeira em frente ao balcão.


Daniel chega na pista de dança e começa a se soltar de uma vez só diante da música que toca neste exato momento: Firestone - Kygo. Ele dança sem se preocupar com qualquer coisa. Ele está leve e vai ficando mais ainda na medida que o efeito álcool toma conta do seu corpo. Aos poucos, o homem que estava no balcão do bar vai se aproximando de Daniel e começa a dançar junto com o rapaz. Eles se esfregam e, na medida que o refrão da música vai chegando, tudo fica ainda mais intenso. Eles dançam em total sincronia, um passa as mãos no outros, até que suas bocas se aproximam cada vez mais, até conseguirem sentir suas respirações quentes. Eles se olham no fundo dos olhos.


Corta Para:


CENA 06/ RUAS DA CIDADE/ NOITE/ NUBLADO.


Ainda escorado na parede ao lado de uma caçamba de lixo, Mateus segue tranquilo esperando Daniel. O local é escuro e a única iluminação presente são as dos led's no letreiro que indica o nome da boate. O homem observa cada ponto daquele local, olha no relógio mais uma vez - Marcando 00:45 AM. A porta da boate se abre, por ela passa duas pessoas e Mateus logo se esconde do lado da caçamba de lixo ao mesmo tempo que continua observando.


As duas pessoas estão rindo, parecem alegres e num momento Mateus observa mais atentamente e percebe que são dois homens e que uma das pessoas é Daniel. Eles parecem conversar e o homem escondido se atenta na conversa.


DANIEL — (Pouco sério, p/Carlos) Não, não. Eu tenho certeza sim! Quase nos beijamos lá dentro e eu não me sentiria nem um tanto melhor se isso acontecesse. Eu amo o Mateus! (T) Muito obrigado por fazer eu me esquecer dos meus problemas pelos menos por alguns minutos. Tava muito difícil, eu realmente não estava conseguindo raciocinar.


CARLOS — (Simpático) Eu não quero perder contato com você. Se precisar de qualquer coisa, um ombro amigo, alguém pra desabafar, eu vou estar aqui.


Daniel sorri em agradecimento e os dois param ao perceberem que chegaram em uma encruzilhada. O local é iluminado apenas pelas luzes de tom meio alaranjado dos poucos postes de luz públicos. O tempo parece ameaçar se fechar. Algumas trovoadas ecoam por todos os lugares.


CARLOS — Me dá seu celular pra eu anotar meu número? Eu não quero mesmo perder contato com você!


Daniel sorri novamente, simpático, e assente com a cabeça. Ele coloca sua mão esquerda em seu bolso e percebe que seu celular não está lá. Ele vasculha outros bolsos, finalmente desiste de procurar e olha para Carlos, meio desapontado.


DANIEL — Que merda, eu esqueci o celular em casa. Me passa o seu pra eu anotar o meu!


CARLOS — Eu também estou sem celular agora! - sorri. - Naturalmente não é muito aconselhável sair carregando um celular há essa hora.


Daniel assente novamente com a cabeça e sorri concordando.


DANIEL — Você consegue gravar de cabeça? Eu te falo e depois você me manda uma mensagem.


CARLOS — Pode falar!


Em alguns metros de distância, Mateus segue observando tudo, até os dois rapazes se abraçarem e seguirem caminhos opostos um do outro. Mateus começa a caminhar mantendo sua expressão de descontentamento, como se estivesse desapontado.


CENA 07/ MANSÃO DOS BROOMER/ RUAS DA CIDADE/ TRANSIÇÕES/ NOITE/ NUBLADO.


  • Trilha Sonora: All Night - Beyoncé.


Valentina, desolada e aparentemente cansada, está com sua cabeça deitada no colo de Carla. A mulher segue calada, mantendo o silêncio predominante no ambiente. Algumas lágrimas caem dos seus olhos, ela está inconsolável e totalmente destruída. Ela permanece assim por longos segundos.


Corta Para:


Daniel caminha pelas ruas como se estivesse sem rumo. Sua mente volta a lembrar da conversa que tivera anteriormente com Valentina. Atrás dele, um pouco distante, está Mateus o seguindo bastante preocupado. Ele olha as horas no relógio novamente, que agora marca 01:45 AM. O mais novo também está bem inconsolável.


Corta Para:


Ainda deitada no colo de Carla, Valentina resolve se levantar e sentar ao lado da sua amiga. Ela cruza seus braços e continua olhando para a frente sem nenhuma reação física, até que seu coração começa a acelerar ao lembrar das palavras do seu filho nos últimos dias. Ela tenta respirar fundo e, logo em seguida, coloca a mão direita em seu peito esquerdo e respira mais fundo ainda.


Neste momento, Carla a segura pelos braços e a abraça novamente em uma tentativa de acalmá-la. As duas permanecem assim por longos segundos.


Corta Para:


Mais trovoadas ecoam por todos os lugares e Daniel permanece caminhando. Ao passo que ele caminha, algumas gotas de água pingam em sua pele e vai ficando mais intenso cada vez mais. O rapaz agora sente uma forte chuva em seu corpo. Suas roupas molham completamente e seu cabelo, antes cacheado, agora esticado ao redor da sua cabeça, totalmente molhado. Ele respira fundo e permanece ali, parado, inerte, profundamente magoado.


CENA 08/ PLANOS GERAIS/ RUAS ESCURAS/ CHUVA CAINDO/ TROVÕES ECOANDO/ ZERO MOVIMENTO.


Corta Para:


CENA 09/ CASA DE MATEUS/ INT./ SALA/ NOITE.


A casa é escura, sem nenhuma iluminação além da que vem de fora pelas janelas. Pode-se ouvir alguns barulhos vindo de fora. Parece ser algumas chaves em atrito. De repente, a porta é aberta e por ela passa um Daniel meio grogue, todo molhado da água da chuva. Ele permanece em total silêncio ao mesmo tempo que caminha até o quarto apenas com o barulho dos passos.


O rapaz entra no cômodo, vai até o guarda-roupas, abre uma das portas e retira de lá uma toalha. Ele se vira de costas pro móvel e seca seu rosto. Ao olhar para frente, ele fica imóvel por alguns segundo apenas lembrando de coisas. E é aí que ele percebe algo na parede, uma ponta meio esbranquiçada saindo por detrás de um quadro mais ou menos grande na parede.


O rapaz, sempre em silêncio, caminha até o quadro e segura a ponta, percebendo que é de papel. Ele puxa o negócio e em sua mão vem uma fotografia com a parte superior rasgada, como se anteriormente estivesse pregada com alfinetes. O rapaz observa a foto e nela está Mateus ao seu lado. A foto parece ter sido cortada e o rapaz estranha. 


Daniel, com cuidado e um pouco de esforço, tenta retirar o quadro da parede. Quando consegue, fica surpreso com o que tem atrás do mesmo: várias fotos recortadas do casal pregadas, uma em cima da outra, como se fosse um santuário. Daniel se aproxima ainda mais das fotos e percebe que ali tem registros de vários momentos no período de um ano. Ele tenta observar tudo com atenção, até que…


MATEUS — (Sério) Tô vendo que você encontrou a surpresa.


Assustado, Daniel se vira até poder ver Mateus encostado na porta do quarto, de braços cruzados e todo molhado da água da chuva.


DANIEL — (Assustado/Meio grogue) Nossa, que susto! (T) Onde você estava?


MATEUS — (Sério) Fui dar uma volta e a chuva acabou me pegando. E você? Onde você estava?


Daniel fica um pouco tenso e Mateus percebe. Seu coração está um pouco acelerado. Ele olha pro mais velho e sua visão é um pouco distorcida por causa do álcool finalmente fazendo efeito em seu corpo.


DANIEL — Eu fui conversar com… - Ele começa a chorar e se encolhe em seu próprio abraço. Em seguida se recompõe e enxuga suas lágrimas. - com a Valentina e depois dei uma volta pra espairecer. Parei numa boato e bebi um pouco também, nada demais.


Mateus vai até o rapaz e o envolve com seu abraço. Daniel agora se sente protegido, mais calmo.


MATEUS — Ela te contou tudo?


DANIEL — Contou!


MATEUS — Eu não te pedir pra falar sobre isso agora, você não está em condições. Vamos tomar um banho quente, trocar essas roupas pra eu te fazer um carinho bem gostoso. Pode ser?


Daniel assente com a cabeça e continua no abraço do namorado por alguns segundos. Ele está mais calmo, porém cansado.


Corta Para:


Daniel e Mateus, abraçados, estão debaixo do chuveiro. A água cai em suas cabeças, o box fica embaçado devido à fumaça da água quente. Eles trocam algumas carícias, de vez em quando alguns beijos tão quentes como a água.


Corta Para:


Os dois, agora deitados na cama, trocam carinhos. Daniel está com a cabeça deitada no peito de Mateus envolto por um braço do namorado, acariciando sua barriga e recebendo um cafuné. Eles continuam assim por um longo tempo, até que adormecem.


CENA 10/ PLANOS GERAIS/ CIDADE/ PRÉDIOS/ CASAS/ MANSÕES/ ESTRADAS/ CARROS E MOTOS PASSEANDO/ AMANHECE NA CIDADE.


Corta Para:


CENA 11/ CASA DE MATEUS/ INT./ QUARTO/ MANHÃ.


Deitado na cama, Daniel parece estar acordando aos poucos. Ele se mexe e estica seu braço direito procurando Mateus. Ele abre os olhos e percebe que está sozinho no quarto. Ele se levanta apenas de cueca, veste uma bermuda e começa a caminhar até fora do quarto a procura do namorado. Ele primeiro vai até o banheiro, depois até a cozinha, em seguida até a sala e o encontra sentado no sofá assistindo.


DANIEL — (P/Mateus) Bom dia!


Mateus olha para Daniel por cima dos ombros e sorri ao vê-lo.


MATEUS — Bom dia, amor!


Mateus solta um beijinho de longe para Daniel e o mais novo solta um riso.


Corta Para:


Daniel escova os dentes, lava o rosto e logo em seguida o seca com uma toalha. O rapaz volta até a cozinha, pega uma tigela, leite na geladeira, uma caixa de cereal no armário e coloca todos os ingredientes ao seu gosto na tigela. Após isso, ele caminha até a sala e senta no sofá ao lado de Mateus.


MATEUS — O que foi que sua mãe te disse ontem?


DANIEL — (Tenso) Ela me contou tudo. É algo tão pesado que eu não sei como estou conseguindo me controlar aqui. Foi quase um tiro no meio da minha cara! (T) Ela me disse que… que meu pai espancava ela, que em uma dessas brigas ela tentou se defender e acabou assassinando ele.


Neste momento, Mateus fica visivelmente chocado. Ele olha no fundo dos olhos de Daniel e instantaneamente algumas lágrimas ameaçam cair do seu rosto.


DANIEL — (Surpreso) Nossa, Mateus, eu imaginei que você iria ficar chocado, mas nem tanto assim!


MATEUS — (Enxugando as lágrimas) Desculpa! (T) Eu sinto muito, meu amor. Foi pesado pra mim ouvir isso, imagina pra você que é filho dos dois? (T) Mas me diz: o que você pensa em fazer?


DANIEL — Eu não sei! Realmente é tudo muito difícil pra mim. Eu pensei bastante em tudo antes de dormir e eu cheguei a conclusão de que entendo o lado dela. De verdade, eu entendo. Eu só não consigo entender o porquê dela não ter chamado a polícia.


Neste momento, os dois são interrompidos pela alta abertura de um jornal na TV.


"Jornalista — Hoje a cidade de São Paulo acordou com um crime brutal ocorrido na noite de ontem. Um rapaz foi brutalmente assassinado com pancadas de pedra no rosto após sair de uma boate conhecida como The Night Is Ours. O corpo da vítima, já identificada como Carlos Machado Loonger, está prestes a dar entrada no necrotério da cidade…"


DANIEL — (Chocado) Meu deus, eu conheci ele ontem na boate.


Mateus — Que horror, meu deus! Que perigo essa cidade, hein?


DANIEL — (Chocado) Eu não estou conseguindo raciocinar. Ele mostrou ser uma pessoa muito legal, cara. Não merecia isso!


Mateus rapidamente olha para Daniel e acaricia sua mão esquerda. O mais novo segue chocado com a notícia.


CENA 12/ MANSÃO DOS BROOMER/ INT./ QUARTO DE VALENTINA/ MANHÃ.


Cortinas fechadas, quarto escuro e frio. Valentina está sentada na cama. Ela segura em suas mãos duas fotos: uma de Ruan e outra de Daniel. Na primeira Ruan aparece sério e de braços cruzados. Já Daniel, na segunda, aparece feliz, sorridente e descontraído. A mulher dá umas fungadas e sente algumas lágrimas recorrentes descerem por suas bochechas.


VALENTINA — (Deprimida) Meus filhos!


Ela agora abraça as duas fotos em seu peito e deita na cama, bastante triste e magoada.


CENA 13/ PLANOS GERAIS/ PRÉDIOS GRANDES/ CASAS/ MANSÕES/ A NOITE CHEGA NA CIDADE.


Corta Para:


CENA 14/ MANSÃO DOS BROOMER/ INT./ SALA/ NOITE.


Sentada no sofá, Valentina segue com a expressão fechada e olhando pro nada por alguns segundos. De repente a campainha toca, ela se levanta e começa a caminhar na direção da porta. Ela abre-a e fica surpresa ao ver Mateus parado em sua frente.


MATEUS — (Calmo) Eu posso entrar?


VALENTINA — (Nervosa/Rude) O que você tá fazendo aqui? An? Já não basta ficar o tempo inteiro colocando o meu filho contra mim?


Mateus entra na casa e Valentina fecha a porta, o seguindo logo em seguida.


MATEUS — Você é louca, não é? Eu nunca coloquei o teu filho contra você.


VALENTINA — Você colocou sim. Eu tenho certeza disso, até porque o modo como você fala comigo entrega as suas intenções. Eu te digo uma coisa, Mateus, eu não sei qual o seu pensamento a respeito de mim, mas saiba que nada me machuca mais do que ver o meu filho sofrendo. Eu não queria que fosse desse jeito!


MATEUS — Eu sei que você não queria!


O homem senta no sofá e Valentina permanece em pé, muito nervosa, e agora surpresa.


VALENTINA — O que você tá falando aí?


MATEUS — Conheço bem o tipo de pessoa que você é. E não encare como uma ofensa. Eu sei que você tem lá suas boas intenções, mas deixa eu te falar uma coisa: de boas intenções o inferno tá cheio.


VALENTINA — O que você quer dizer com isso? An? Me fala!


MATEUS — Eu quero dizer que o seu erro foi ter escondido do seu filho coisas importantes sobre ele, coisas que ele tinha e tem direito de saber.


VALENTINA — Ele te contou tudo? Ele te falou alguma coisa? Me diz que meu filho vai me perdoar, por favor!


MATEUS — Ele não precisou me contar tudo!


Valentina neste momento olha no fundo dos olhos de Mateus. Ela permanece desesperada por dentro, porém prestando atenção.


MATEUS — Eu sei de tudo! (T) Sabe por quê? Porque há vinte e cinco anos uma criança de sete anos de idade teve sua vida destruída.


Valentina agora sente suas pernas fraquejarem. Seu coração acelera rapidamente. Aos poucos a expressão calma de Mateus vai dando lugar à uma expressão mais afetada. Sua voz começa a embargar.


MATEUS — (Nervoso) Há vinte e cinco anos uma criança de sete anos de idade teve que fugir com medo e sofrer o pão que o diabo amassou por anos.


Valentina começa a sentir um formigamento nos braços e no rosto. Mateus segue pouco afetado, porém seu nervoso é visível.


MATEUS — (Nervoso) E porque há vinte e cinco anos eu também prometi pro Daniel que iria cuidar dele.


Dessa vez Valentina sente uma forte tontura e senta no sofá, meio grogue. Seu rosto segue formigando, ao mesmo tempo que agora passa a sentir partes do seu rosto entortando. Seus membros direitos começam a enfraquecer e seu corpo também começa a pender para esse lado. Rapidamente sua cabeça encosta no braço do sofá e ela permanece assim.


VALENTINA — (Desesperada/Incapaz) Ruan… Ruan… me ajuda!


MATEUS — (Chorando) Eu não posso te ajudar, mamãe! (T) Há vinte e cinco anos eu também precisei de ajuda. Você apenas me deixou ir pra sofrer por uma vida inteira com paranóias, trauma, pobreza, passando fome!


Valentina consegue apenas movimentar os olhos.


MATEUS — (Chorando) Eu cheguei a morar debaixo de uma ponte. Cheguei a me enfiar em lixões sujos e fétidos pra conseguir alguma coisa pra comer! (T) Eu passei anos esperando alguém ter pena de mim. Você sabe o que é esperar por pena dos outros? Eu esperei e posso te garantir que não é nada bom!


VALENTINA — (Incapaz) A… a… ajuda…


Ele enxuga suas lágrimas e agora olha na direção de Valentina.

MATEUS — Você não teve culpa do que aconteceu há vinte e cinco anos atrás. Não teve, não! Você se defendeu e jamais eu vou te julgar por isso. Era você ou ele! (T) Você errou comigo e errou em partes com o Daniel, e só. Mas eu não posso te ajudar!


Mateus lentamente se levanta, vai até perto de Valentina, se abaixa e deposita um beijo em sua testa. O homem levanta novamente e agora caminha na direção da porta, até conseguir abri-la e ir embora, deixando Valentina sozinha naquela sala escura, fria e vazia.


A mulher está com partes do seu rosto tortas, como a boca, a bochecha. Deitada por cima do seu braço direito, ela permanece ali.


CENA 15/ PLANOS GERAIS SILENCIOSOS/ PRÉDIOS/ CASAS/ CÉU NUBLADO/ AMANHECE.


Corta Para:


CENA 16/ CASA DE MATEUS/ INT./ SALA/ MANHÃ.


A chuva cai forte lá fora. A casa é silenciosa. O único barulho é da queda da água. Daniel, sentado e assistindo TV, mantém uma expressão fechada e meio tristonha. Ele recebe uma ligação no celular. Ele olha o número e vê que é Carla. O rapaz atende, levando o aparelho até sua orelha direita. Na medida que os segundos passam, sua expressão fechada dá lugar à uma de desespero.


Daniel agora está transtornado ao ponto de deixar o celular cair no chão. Ele grita desesperadamente e chora sem parar. Mateus agora aparece na sala e corre até o rapaz, o abraçando, enquanto o mais novo continua desesperado e muito nervoso.


DANIEL — (Chorando) Ela não teve culpa de nada! Ela morreu, Mateus. A minha mãe morreu!


Os dois continuam abraçados. Daniel ainda totalmente desesperado e Mateus um pouco choroso.



Fim(?)